Ando para trás e para a frente com este texto porque acho que não vou conseguir escrever algo que valorize o livro. Há livros assim, que nos enchem de emoção ao ponto de nos custar muito detalhar a razão. Filho da Mãe é um desses livros. Quase a fazer quarenta anos, Hugo Gonçalves recebe o testamento do avô num saco de plástico e este momento com a avó dá o mote para regressar a março de 1985, na tarde em que, ao regressar da escola primária, soube que a mãe tinha morrido.
Durante o tempo de escrita, Hugo procura pessoas e lugares, em busca de memórias perdidas ou esquecidas. Nesta investigação pessoal, Hugo volta à infância para tentar fazer sentido daqueles tempos, mas também vai percorrendo todas as suas histórias e os lugares por onde passou, descobrindo neles uma ligação visceral ao menino que foi. Entre regressar ao Algarve da infância e descobrir o caos em Nova Iorque, Hugo Gonçalves partilha, neste livro, um relato muito íntimo sobre luto, mas também sobre família e crescimento. A ausência da mãe torna-se também uma presença incontornável.
Porque saber revela-se a única forma de impedir a fuga. Porque o não dito torna-se maldito. E porque há qualquer coisa de desafio nesta procura, como se eu estivesse de novo no apartamento, uma semana após a morte, e entrasse em todas as divisões esperando encontrar a minha mãe. Talvez seja um absurdo ter um propósito que pode causar danos, mas não é mais absurdo não ter qualquer propósito? Se mexo em tudo isto, como diz a minha amiga, é porque acredito que a escrita tem por vezes os mesmos mecanismos da dependência — a procura da recompensa, a antecipação do prazer assim que uma ideia ou uma imagem se formam na mente e a frase que as poderá articular se manifesta de rompante. E depois o transe, quando atrás dessa frase vem outra, e depois outra, e a corrente de palavras se sintoniza com o fluxo de consciência; mundos inteiros de sagas e lutos familiares erguendo-se do nada, desmascarando a vida. Mas aí reside a diferença entre a adição e a escrita. Na primeira, revelamo-nos ao fugir. Na segunda, revelamo-nos ao ficar. Se as drogas são a evasão e o esconderijo, a escrita é o peito aberto às balas. É imperativo que eu enfrente, descubra e escreva na proporção exata da devastação que apagou tudo.
Li o livro em maio e acabei por o reler há poucas semanas. Há uma grande carga emocional em Filho da Mãe, mas também é um livro com uma perspetiva racional muito importante, que lhe dá uma série de camadas de análise. De uma forma simples, Filho da Mãe entrou automaticamente para o meu top de melhores livros lidos este ano. A reflexão sobre quem nos tornamos na ausência de uma mãe, mas também no quanto a ausência se torna uma presença e, acima de tudo, na maneira como a morte é contada a uma criança e o impacto que isso terá no adulto que ela se tornará. Filho da Mãetraz uma carga emocional associada a uma carga reflexiva que vai muito além do momento da vida em que é escrito. Quem era aquela mãe antes de ser mãe? Como terá vivido aqueles anos com os filhos sabendo que podia morrer? Como é que aquele luto moldou a infância, a adolescência e até a vida adulta? Hugo Gonçalves conduz-nos numa viagem em que tenta também encontrar uma parte de si que julga ter deixado de existir com a mãe e oferece-nos um livro tão bonito, visceral e emocional que não há como não lhe ficar agradecida pela generosidade de partilhar aquele lado tão íntimo com os leitores.
Depois há, claro, todas estas camadas: em primeiro lugar a morte da mãe e tanta coisa que passa despercebida a um miúdo de oito anos. O diagnóstico, a certeza de ir morrer, a última esperança no estrangeiro. O cancro é uma doença muito solitária, mas nos anos 80 seria ainda pior. No entanto a solidão, a revolta, o medo e a necessidade de encontrar todos e quaisquer bocadinhos de esperança mantém-se os mesmos.
Em segundo lugar, ao constatar o tanto da doença que lhe passou ao lado, Hugo percebe também que houve muito do luto que não lhe chegou porque ele próprio tinha de lidar com um luto que ninguém lhe explicou. Nunca lhe disseram o que era o cancro. E ao lidar com a perda e o luto tão pequeno tudo o resto na vida é, inevitavelmente, moldado a essa imagem: primeiro, a família de três, que mais tarde volta a ganhar um elemento feminino; depois, a vida na escola, sempre a sentir-se diferente porque todos tinham uma mãe; por fim, na vida adulta, ao perceber que o ponto em que está poderia ser diferente se não tivesse perdido a mãe. E terá sido isso que o fez ser assim? Será que é na perda da mãe que ele próprio se vai perdendo na vida? A reflexão sobre a identidade associada ao luto, mas não ficando retida nele, é algo muito interessante de ler aqui.
E não podemos, claro, esquecer o coletivo, a família e as suas complexas relações. O irmão, o pai, os avós. O que é que eles viveram naqueles anos de sofrimento da mãe que ele não percebeu? Serão os lutos semelhantes?
Percebi que este livro ficaria comigo durante muito tempo quando, ao terminar a primeira leitura, precisei de ficar um bom bocado a chorar agarrada àquelas páginas, sem saber como seguir a vida depois daquele testemunho. Mas a verdade é que, mesmo sem as lágrimas, este será um daqueles livros que recomendarei muito e muitas vezes, a todos quantos me vierem pedir sugestões. Não é tanto que o ache obrigatório, porque caio pouco em obrigatoriedades, mas Filho da Mãe é um livro que merece todo o amor que tenhamos para lhe dar.
Título original: Filho da Mãe
Autor: Hugo Gonçalves
Ano: 2009 (reeditado em 2022)
Lido entre 13 e 18 de maio e entre 5 e 6 de setembro de 2025
ainda sem comentários